Regabofes

Rui Bebiano, um dos mais interessantes pensadores da nossa contemporaneidade e que mantém um dos mais interessantes blogs da mesma, publicou no dito uma pequena reflexão sobre o regabofe. Assim: «Uma frase curta com a qual nos têm martelado os ouvidos, como afirmação supostamente mordaz para justificar tudo aquilo que de mau nos está a acontecer, declara que «é preciso acabar com o regabofe». A frase é incómoda e perigosa porque tem sempre um sentido unívoco. Com ela se pretende indicar que ao longo das últimas décadas as pessoas comuns tiveram direitos a mais, uma qualidade de vida que não mereciam, educação e saúde exageradamente acessíveis, transportes ao preço da uva mijona, férias estupidamente longas, uma estabilidade no trabalho que só lhes fez mal à inteligência e aos músculos (...)». Ora isto nem me parece justo nem me parece razoável. E não é só porque fazer juízos de valor sobre as intenções dos outros seja um terreno pantanoso. Mas sobretudo porque essa frase não tem objetivamente «um sentido unívoco». Muita gente, aliás, quase toda a gente, incluindo certamente Rui Bebiano, tem essa perceção, de que é necessário acabar com o regabofe e não é nada certo que o façam com aquele sentido. No meu caso, é no sentido sobretudo do regabofe na gestão da coisa pública, do estado e das suas ubíquas ramificações. A situação de pré-falência nacional, os ruinosos contratos público-privados, a corrupção, o tráfico de influências e outros cancros políticos estão aí à vista de todos. E reclamam de facto que se acabe com o regabofe. Mas a questão do regabofe também pode ter, efetivamente, outro sentido. E já são dois. Um sentido não político mas privado. E aqui, sim, já se aproximará mais do raciocínio do historiador conimbricense. Este regabofe de que falo (eu e muitos outros que leio e ouço) tem a ver obviamente não com educação, saúde ou transportes, mas sim com uma cultura de consumismo desenfreado que tomou de assalto a nossa sociedade, um materialismo hedonista e voraz que levou, por exemplo, a níveis esmagadores de endividamento privado ou a níveis alarmantes de destruição do meio ambiente. Uma sociedade apaixonada pelo ter e não pelo ser, que parece ter-se esquecido de cuidar do amanhã em nome de um qualquer primado do aqui e do agora. É deste regabofe privado que ouço falar, que também é causa da situação em que estamos. Admito que também existam pessoas perversas que defendam o tal sentido de que fala Rui Bebiano. Mas não é unívoco, já é um terceiro.

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