«(…) Apesar desse seu diagnóstico todos os dias ouvimos dizer que a nossa sociedade é, cada vez mais, uma sociedade sem valores, como é que isso se explica?
Se isso fosse verdade, era algo de que não se falaria, isso é absurdo. Nunca vivemos em sociedades tão morais como actualmente, bem pelo contrário, temos todos os dias um novo debate moral na imprensa, fala-se da eutanásia, fala-se da bioética, vai-se falar dos cuidados a prestar aos deficientes, do modo como teremos de apoiar os desempregados, da acção humanitária e caritativa na Somália ou noutro lugar, e quando há um tsunami as pessoas dão dinheiro… como quando o houve o tsunami na Tailândia há três anos, nunca se viu a sociedade ocidental dar tanto dinheiro, havia até dinheiro a mais…”
Então o que é que explica esta dissonância, o facto de nunca termos tido, como diz, uma sociedade com tantas preocupações morais e simultaneamente a percepção de que estamos a viver uma época desprovida de valores morais?
Porque as pessoas confundem, nomeadamente os intelectuais, duas coisas. Confundem por um lado a questão da moral… o que é a moral? Em traços gerais, é o respeito pelo outro, é isto a moral, genericamente, para nós, hoje em dia, são os direitos humanos. Essas pessoas confundem a moral com a espiritualidade e não tem nada a ver. Dou-lhe já um exemplo para que isto fique claro: O luto por um ser amado. Se você perder alguém que ama, o seu filho, a sua filha a sua mulher, não interessa, isso não é uma questão moral, não é uma questão de respeito pelo outro, temos aqui toda uma configuração de problemas existenciais, o amor, evidentemente, o luto por uma pessoa amada, mas também, por exemplo, o aborrecimento, a banalidade da vida quotidiana, não são questões morais, uma boa parte da educação das crianças também não diz respeito à moral, confundem-se portanto valores morais com valores espirituais e uma coisa não tem nada a ver com a outra, você pode comportar-se como um santo, como alguém perfeitamente moral, ser respeitador dos outros, ser generoso, preocupar-se com o bem-estar e com a liberdade dos outros, pode comportar-se com alguém extraordinariamente moral e isso não o impedirá nem de envelhecer nem de perder uma criança num acidente de automóvel, nem de ver os seus velhos pais que ama tanto morrerem, isso não tem nada a ver com a moral, portanto, a verdade, e não compreendo porque é que isso não é dito, é que vivemos em sociedades hiper-morais e totalmente privadas de espiritualidade, nomeadamente entre aqueles que não são crentes, esta é a realidade. No fundo, o que são as nossas sociedades? A fórmula das nossas sociedades é a seguinte: É o mercado, mais os direitos do homem. Mas não há nisto qualquer espiritualidade. O que falta é uma espiritualidade não-religiosa. Não é a moral que nos falta, é uma espiritualidade laica, ou não-religiosa (…)»
Luc Ferry, in Pessoal e Transmissível, TSF, programa de Carlos Vaz Marques, julho de 2011; entrevista integral disponível aqui.